quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Bethi


Seus 70 anos não impediam os risos quando observava as meninas pulando elástico, lembrava das vezes que voava cantando rimas que havia aprendido com a irmã mais velha. Ficava à janela de casa, acenava para as vizinhas, comprava leite pela manhã, comprava pão e cuidava de alguns pássaros. Só estudou até a oitava serie e ainda se lembrava dos cabelos presos que a mãe penteava, cuidadosamente, bem cedo.
Com 30 anos ouviu as noticias sobre a segunda guerra, ouviu sobre as passeatas e a proibição de falar “passeata”, mas nunca soube ao certo as coisas da guerra.
Morava perto da casa de minha avó, era amiga de minha avó. Eu vi aquela mulher durante toda minha infância, ficava mais bonita com azul, combinava com seus cabelos alvos e sua pele quase sem sol.
Ontem voltei a cidade, percorri caminhos de minha idade pouca e vi emoldurada numa janela azul a mesma senhora que vi durante toda a minha infância. Reparei que nunca havia prestado atenção aos seus olhos, mas ontem fiz isso e consegui ver sua curiosidade escondida em um olhar disfarçado, já quando nos afastávamos passando na rua em que ela mora. Pensei em quantas coisas ela pensa ali daquela janela. Eu também fiquei curiosa , quis saber de seu baú , das coisas que ainda tem guardadas, da infância, quis ser curiosa da sua vida , do mesmo jeito que ela pareceu ser da de todo mundo - a curiosidade inocente, a curiosidade de saber como é ser cada um, como é passar por coisas que não passará -. Vi beleza na curiosidade dela e vi idade, vi despedida, da próxima vez talvez ela não esteja mais lá.

Maçã com canela


Coloquei um sache de chá numa xícara transparente, com água pela metade. Era tarde, muito silêncio pela casa, eu sentada na cabeceira da mesa, observava o sache soltar uma cor rosa e forte na água quentinha. Meu corpo pesava, anunciava uma gripe.
Fui para a janela e ascendi um cigarro, coisa normal durante as madrugadas. Mais cedo naquele mesmo dia alguns carros foram rebocados por estarem estacionados irregularmente. Lembrei desse fato e refleti sobre as vagas de estacionamento à frente de meu apartamento, nenhuma delas estava ocupada, bem diferente das manhãs.
Nas noites só alguns bêbados passam por aqui, só os carros em alta velocidade.
Terminei o cigarro e voltei para perto do chá. Meu vizinho saxofonista ainda arriscava umas notas desafiando a lei do silêncio.
Meu chá pronto e eu, agora sentada no sofá, misturava um pouco de mel a água rosa e a realidade com o sono e os sonho.
Adormeci sentada ali, não sei ao certo a hora que dormi, depois do terceiro gole de chá eu já não me lembro de nada. Acordei com as buzinas dos carros procurando vagas na porta do prédio e vi o sol rosa atravessando a xícara vazia na janela.