terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Azul


Azul, bem azul, era o monto da Santa na sala. Ali tudo era agradecido a Deus. O café quente, coado no fim da tarde chamava visitas que não se incomodavam com a simplicidade ,que era relatada, antes do primeiro passo, pela dona da casa.
Enxadas e facões adornavam e denunciavam de onde vinha o sustento: todos trabalhadores rurais.Todos criados na roça capinando, arando, calculando pela lua, pelos meses, pelas crenças o que se podia plantar.
Meu pai, que nunca viu diferença entre os cafés, me ensinou a ver com beleza e sem distinções aquela realidade. Aquela realidade era a minha, quanto eu compartilhava daquela sala, e entrava pelas narinas e adoçava o esôfago, entrava com aquele liquido negro e eu já podia sentir os calos, o gosto do fumo, o frio das manhãs, as botas pesadas, as costas esfoladas pelo trabalho, os olhos vermelhos sobreviventes das queimadas, o cheiro da lama, o aboio, o cansaço.
Comi nos pratos deles, senti o azedo da farinha caseira, o dendê feito ali mesmo. Senti aquele calor do preparo, o cheiro da lenha, os estalos da madeira, a água natural, a presença dos animais embaixo da mesa, a cólera da criança, a fagulha saltando, o cheiro de fumaça, a mão grossa, as marcas fundas, a testa marcada.
Era meu tudo aquilo, as dores eram minhas, o sorriso deles eram meus, o som dos grilos, as picadas de mosquitos, o calendário de propaganda, os copos desiguais, a falta de luxo, a falta de palavras, a canção, a roupa surrada no varal, a gentileza, a verdade, a gaiola, o suor. E ali dentro eu tinha até o olhar da Santa e a certeza de que existe Deus.

Um comentário:

Rafael Lamêgo Magalhães disse...

Cada vez mais que eu te leio, mais te admiro. Tú tem talento garota...